Catástrofes naturais, pandemias e o direito da contratação pública

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Por Artur Trindade Mimoso, mestre em direito e adjunto do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional

O primeiro caso do novo coronavírus no mundo terá ocorrido a meados de novembro de 2019, tendo o primeiro caso confirmado do novo coronavírus ocorrido a 17 de novembro, na cidade chinesa de Wuhan, na província de Hubei.

A 1 de janeiro de 2020, é encerrado o mercado de peixe e carne em Wuhan por se suspeitar que esse foi o local que estará na origem da contaminação, dado que os primeiros doentes infetados pelo novo coronavírus tinham todos ligação aquela cidade.

Em 11 de fevereiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decide à infeção provocada por este novo coronavírus apelidada oficialmente com o nome de Covid-19.

À data, ninguém suspeitaria que este nome se tornaria até hoje, num dos piores pesadelos que o mundo já conheceu nas últimas décadas.

Num mundo totalmente globalizado, rapidamente o Covid-19, se espalharia pelo mundo inteiro, devastando-o e deixando-o em suspenso até aos dias de hoje.

Em Portugal, a 2 de março de 2020, são confirmados os 2 primeiros casos de Covid-19.

Até ao dia de hoje, morreram em Portugal vítimas de Covid-19, 16 848 portugueses.

Os danos económicos, sociais e de saúde, entre outros, são inquantificáveis.

A 11 de março de 2020, a OMS declarou a doença Covid-19 como pandemia.

Esta foi  a primeira vez que uma pandemia é decretada devido a um coronavírus. 

Por forma a enfrentar esta crise pandémica, a 13 de março de 2020, Portugal publicou o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, que estabeleceu medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – Covid-19.

No que tange, direito da contratação pública e regime de autorização de despesa, este diploma, entre outras exceções,  criou um regime excecional que, nos ternos do n.º 1 do seu artigo 2.º,  possibilitou, até aos dias de hoje que, para efeitos de escolha do procedimento de ajuste direto (independentemente do valor) para a celebração de contratos de empreitada de obras públicas, de contratos de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, independentemente da natureza da entidade adjudicante, se aplica o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual, na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa.

Ou seja, este diploma, criou a possibilidade da adoção, por parte das entidades adjudicantes do n.º 1 e n.º 2 do artigo 2.º do CCP, de procedimentos ao abrigo de um critério material previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do CCP, «adotado em situações na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa», isto é, que estas entidades adjudicantes, pudessem escolher o ajuste direto independentemente do valor do contrato a celebrar para a aquisição de bens e serviços e execução de empreitadas.

Efetivamente, à data da publicação desta norma, à qual se associaram outras exceções de simplificação da tramitação procedimental, ninguém questionaria o mérito, a pertinência, clarividência e sobretudo que a mesma prosseguia cabalmente o interesse publico.

Mas será que a exceção criada há mais de um ano, fará sentido hoje? Defenderá de igual forma o interesse público? Será de aplicação a todos os procedimentos de aquisição de bens e serviços e execução de empreitadas?

Desde logo porque a norma publicada há um ano, com clareza, rigor e sem apelo à arsinveniendi, não deixa dúvidas.

Certamente que, nem  Bártolo, enquanto luz do direito,  nem Baldo teriam muito a comentar neste caso.

A norma é clara, “… na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa”.

Eventualmente para muitos de nós, concordaremos que os motivos que originaram a criação deste regime excecional, reitero à data como todo o mérito, hoje não se verificarão.

Será que hoje, mais de um ano depois da criação deste regime excecional, não conseguiremos planear com rigor, segurança jurídica e profissionalismo, ao abrigo de princípios como a concorrência, a igualdade, a transparência,  a racionalização dos dinheiros públicos, a boa administração , entre outros, adotar um procedimento concorrencial, para a compra de material de proteção individual, de medicamentos, dispositivos médicos, ou  outros bens e serviços assim como,  executar uma qualquer empreitada, ao invés de continuar reiteradamente a adotar regime excecional do ajuste direto, independentemente do valor do contrato.

Certamente, existirão casos em que por razões de interesse publico será necessário a adoção do regime excecional.

Mas, quando não o for? Seguramente, ninguém perceberá, aceitará ou ficar indiferente a tal escolha.

O Tribunal de Contas na fiscalização sucessiva aos contratos celebrados ao abrigo deste regime excecional já veio informar publicamente nos dois relatórios já elaborados, que os mesmo carecem de maior detalhe e poucos destes contratos, estão publicados no portal base, facto que impossibilita uma análise mais abrangente e um escrutínio público exímio.

Essa análise e escrutínio será efetuado, e eventualmente chegaremos à conclusão de que a adoção do regime excecional, nalguns casos não teria razão de existir por falta do critério material, já não se verificava uma situação de urgência imperiosa e já não era estritamente necessário.

E sim, devíamos, podíamos, seriamos obrigados a nalguns casos planear e obviar medidas restritivas da concorrência, que podem conduzir a eventuais práticas de corrupção na contratação pública.

Mas também podíamos, melhor estaríamos obrigados a criar outras soluções, designadamente, através da criação de instrumentos procedimentais especiais, como, acordos quadro, sistemas de aquisição dinâmicos, catálogos eletrónicos, cujo objeto contratual fossem bens e serviços prioritários, teria sido obrigatório a  redefinição das categorias do Sistema Nacional de Compras Públicas. A central de compras tem essa função, nesta situação de catástrofe, ainda mais. Como se sabe este instrumentos procedimentais especiais utilizados para “satisfação de necessidades frequentes, repetitivase de grande volume” por parte das entidades adjudicantes, são  instrumentos servem para “simplificar a contratação futura”, toda a “carga burocrática” é relegada para a formação do acordo quadro, sendo mais fácil a compra ao abrigo do acordo quadro, assim, facilitamos os fornecimentos ou prestações de serviço, alcançar economias de escala, através da agregação de necessidades de fornecimento de bens ou prestações de serviço das várias entidades adjudicantes proporcionando as melhores condições «value for money» a essas entidades adjudicantes, consequentemente contribuímos para a redução da despesa pública, através da agregação de compras/centralização de

E principalmente, privilegiamos a concorrência em detrimento da adoção do ajuste direito a um único fornecedor.

Nestes tempos de catástrofe causada pela pandemia de Covid-19, deveríamos ter utilizado todas as possibilidades que o Direito da Contratação Pública nos dá, ou no mínimo, monotonizar, reavaliar e se necessário alterar. 

Sobre o tema ininterrupção no fornecimento dos bens e criticidade na obtenção doas mesmos em situações de emergências ou catástrofe, como aquela em que vivemos refere o Professor Miguel Assis Raimundo[1] que um dos meios ou instrumento mais adequado são os acordos quadro, eu acrescentaria, e os sistemas de aquisição dinâmicos. Nas suas palavras, este instrumento é aquele que mais se adequa a fazer face a situações de respostas a catástrofes, principalmente por duas ordens de razão, a primeira, porque os acordos quadro simplificam a compra futura, retirando a esta um grau de complexidade e morosidade inerente a outro tipo de procedimentos, principalmente nos acordos quadro fechados ou contratos quadro. Acresce que, este procedimento é “mais amigo” da concorrência, na medida que, ao contrário do ajuste direto por critérios materiais, com fundamento em urgência imperiosa, no Acordo Quadro já houve previamente, aquando a formação do Acordo Quadro um apelo generalizado à concorrência. Em segundo lugar, porque o Acordo Quadro não implica uma compra firme, estas apenas fixas condições e seleciona fornecedores para uma compra futura, que se pretende mais rápida, eficiente, simples, oportuna, transparente e comportável pelo erário público e sinónimo de boa administração.

 Ora, face ao exposto e apelando ao momento complexo que o mundo atravessa resultado da pandemia de Covid-19, devíamos (há meses) contemplar a um conjunto de acordos quadro com categorias que pudessem dar resposta imediata, transparente e oportuna, a situações de catástrofes naturais do passado (incêndios, cheias, acidentes, tumultos), assim como, catástrofes naturais do presente e do futuro (pandemias, guerras, conflitos, tumultos, entre outros). O Sistema Nacional de Compras Públicas, moderno, atual e atento, deveria ter acordos quadro com estas caraterísticas e função, de forma a preparar as consequências destes eventos, muito mais necessários em momentos de emergência. A criação de um catálogo de serviços abrangente, dinâmico e evolutivo permitiria que o Sistema tivesse a adesão pretendida e principalmente criasse valor ao Estado, ajudasse as entidades adjudicantes e os seus gestores públicos, que assim, estão entregues à sua sorte.

 Essa redefinição de categoriasdeveria ser efetuada através da criação de orientações emanadas pelos vários Ministérios, identificando quais os bens ou serviços que são críticos naquele Ministério. A título de exemplo, diremos que ninguém duvidará que o planeamento para a aquisição de meios de combate a incêndios deve ser definido através de diretrizes do Ministério da Administração Interna em articulação com o Ministério da Defesa Nacional, envolvimento da Proteção Civil, entre outros.

Já a compra deve estar centralizada na Central de Compras, por ser a entidade que, à partida, pela sua especialização, conhecimento, formação e capacitação dos seus recursos humanos, melhor condição terá de garantir a operacionalidade desses meios, atempadamente, no estrito cumprimento do direito da contratação pública e do interesse público.

 Esta redefinição de categorias a centralizar/trabalhar pela Central de Compras do Estado é o que, verdadeiramente, se torna essencial para o funcionamento do Estado, defesa do interesse público e transparência.

Este modelo, já hoje utilizado no setor da saúde para a aquisição de medicamentos do foro oncológico, antirretrovirais, hepatite c, vacinas, doenças lisossomais de sobrecarga, entre outros. Através de um despacho (orientações estratégicas e articulação entre várias entidades para objetivo comum), foi garantida a necessária articulação entre a SPMS, E. P. E., enquanto central de compras da saúde, efetua a aquisição centralizada, a ACSS, I. P., com competências na área financeira, garante o financiamento e pagamento, e o INFARMED, I. P., com competências na área do medicamento e dos dispositivos médicos, procede à identificação dos medicamentos e dispositivos médicos alvo da compra centralizada levada a efeito pela SPMS.

Para a aquisição destes bens e serviços críticos, a criação destes instrumentos procedimentais especiais que ajudam a simplificar com rigor, transparência, eficiência, a compra pública, e sobretudo evitam o persistente recurso ao ajuste direto “sem valor”,  é urgente e ainda estamos a tempo, porque é tempo de aprender com o passado para não errar no futuro.

A pergunta que fica é, eventualmente, quantos ajustes diretos poderiam ter sido evitados por não preencherem a materialidade exigida pela Lei?

Como bem refere o Professor Miguel Assis Raimundo, a formação de acordos quadro, sistemas de aquisição dinâmicos ou catálogos eletrónicos destes bens críticos e serviços teriam certamente ajudado.

Ainda há tempo, haja vontade.

[O tempo revela a verdade.]

Séneca

Artur Trindade Mimoso
Mestre em Direito pela Universidade Católica Portuguesa


[1]RAIMUNDO, Miguel Assis, “Catástrofes naturais e contratação pública”, in GOMES, Carla Amado, (Coord.), “Direito(s) das Catástrofes Naturais”, Coimbra: Almedina, 2012, pp.210, pp. 216, pp. 220-225.

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publicado originalmente a 1 de Abril de 2021