“Sozinho não sou nada”

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“Se é possível está feito. Se é impossível há-de fazer-se”. A frase ficou-lhe na cabeça desde o primeiro dia do curso de para-quedismo militar. Armando Pereira exerce funções na área de Mine Rescue e já esteve envolvido em várias operações de resgate, um pouco por todo o mundo. Na hora de intervir, encara cada cenário como único e com a certeza de que “tudo é possível”, mantendo o foco sempre na solução. Assume o papel de anti-herói e é low profile. “Só sei se uma decisão é certa depois de tomá-la e ver o seu resultado”, conta. Actualmente, divide o tempo entre Portugal e a Finlândia, é coach, consultor e professor. A Security Magazine foi conhecer a sua experiência.

Security Magazine – A segurança surgiu durante o seu serviço militar nos anos 80. Que aspectos contribuíram para o seu interesse por esta área?

Armando Pereira – Cumpri o serviço militar no então CTP – Corpo de Tropas Para-quedistas que integrava a Força Aérea. Após a recruta e toda a formação inicial,  frequentei  o curso de Tratador e Treinador de Cães de Guerra. Na época, a cinotécnica integrava o sistema de segurança das unidades do CTP e outras instalações militares. Mais tarde, integrei a secção de segurança do novo edifício do comando e Estado Maior do CTP, junto do COFA (Comando Operacional da Força Aérea) e a BOTP 1 (Base Operacional de Tropas Para-quedistas nº 1), situada na serra de Monsanto, em Lisboa. Devido à função desempenhada, acabei por participar em diversas missões de segurança em múltiplos eventos militares e governamentais. Mais tarde, após terminar o serviço militar, efectuei segurança/vigilância de embaixadas e outras instituições. Passado uns anos, culmino essa fase ligada à segurança física num projecto diamantífero na Luanda Norte.

Esteve envolvido em várias operações de resgate, um pouco por todo o mundo, que momento destacaria como o mais desafiante, pelo contexto e exigências inerentes?

Na realidade, qualquer operação de resgate é um trabalho de equipa. A resolução de desafios é sempre primariamente em função da capacidade e entreajuda dos elementos que temos ao nosso lado e só depois entram para a equação todos os outros factores do cenário.

O episódio que mais me marcou e que está sempre presente na minha mente ocorreu numa mina em Espanha e foi a confirmação e constatação de que “sozinho não sou nada”.

Em 2015, trabalhava numa mina perto de Sevilha e estava numa fase inicial de formação da Brigada de Intervenção. Esta pode levar meses, ou mesmo anos, até estar operacional.

A 7 de Março (sábado), cerca das duas da manhã, recebi a chamada do supervisor de produção, por coincidência também “brigadista”, que me diz que havia um incêndio na mina e que estavam mais de 20 pessoas no interior (subterrâneo).

Na altura, vivia a cerca de 4km da mina. Levantei-me e em poucos minutos cheguei lá. Estava um alvoroço, os espanhóis tinham pouca experiência de subterrâneos e a mina estava na fase de desenvolvimento inicial. As informações que me chegavam eram de tal forma confusas e contraditórias que não conseguia sequer perceber a localização exacta do incêndio e quantos mineiros estavam no interior. Entretanto, dei instruções para mobilização dos brigadistas que viviam mais perto da operação.

Da “boca da mina” (entrada do túnel) saia um fumo negro e denso. Senti-me, de alguma forma, desorientado e incapaz de tomar no momento uma decisão efectiva, devido à falta de informação precisa. O único brigadista que tinha junto a mim era um jovem que estava há pouco tempo na brigada e na empresa. Nesse momento, fui invadido por uma sensação de total impotência. Tentava raciocinar e abstrair-me de todos os que estavam à minha volta totalmente em pânico – havia gente a chorar, outros a gritar e a querer avançar para dentro da mina para socorrer os camaradas.

Brigada de Intervenção de Mina de Aguablanca
Espanha/Sevilha 2014

Por sorte, a empresa subcontratada, que estava a realizar o desenvolvimento do projecto, tinha diversos colaboradores com experiência de subsolo. Alguns deles tinham trabalhado em outros projectos comigo e já tinham evacuado para o exterior. Olhei de novo para a “boca da mina” e vi as luzes de uma pick-up. Dentro desta, encontrava-se um encarregado de turno que tinha conseguido sair com mais quatro elementos.

De imediato reuni-me com ele para tentar obter o máximo de informações. Surpreendentemente, enquanto esteve junto de um poço de ventilação a aguardar pela sua equipa, ele tivera a astúcia de desenhar num pedaço de papel uma planta com a localização exacta  da máquina que estava arder e onde seria a possível localização dos dois trabalhadores bloqueados (um português com muitos anos de mineiro e um espanhol sem experiência). De salientar que o português podia ter saído do local e mesmo chegado à superfície. No entanto, decidiu não abandonar o colega espanhol que entrou em pânico e ficou imóvel no local onde se encontrava.

Entretanto, chegam junto a mim mais dois brigadistas, passamos a quatro elementos, e é confirmada a existência de quatro mineiros no interior da mina.

Sabia que tinha de entrar. A minha experiência e calma iriam ser uma parte preponderante para o sucesso, era importante decidir quem me acompanharia na busca e resgate e quem ficaria de apoio e a aguardar a chegada de mais brigadistas. As incertezas eram muitas, tinha consciência dos riscos, da falta de experiência dos meus camaradas e da suas inseguranças, mas havia quatro vidas em risco.

Tomei uma decisão: “Vamos baixar os quatro até ao poço de ventilação e dou instruções sobre os cuidados e pormenores a ter em atenção”.

Com os equipamentos respiratórios às costas (ARICA´s com duas garrafas) entrámos no “nevoeiro negro”. A total falta de visibilidade foi um choque para os meus camaradas, tentei acalmá-los e, dentro do possível, fui observando as suas reacções. Nesse momento, já estava a seleccionar quem avançaria comigo para além da BAF (Base de Ar Fresco).

Quando chegamos à BAF encontramos dois mineiros que, entretanto, tinham conseguido aí chegar. Estavam nervosos e totalmente exaustos, tinham subido uns bons metros pelas rampas a respirar com as suas máscaras de fuga (filtro de monóxido de carbono).

Nesse momento, virei-me para o eleito e disse-lhe: “Companheiros, preciso de ter alguém de retaguarda, não podemos ir os quatro, temos de ter dois na superfície e um vai avançar comigo”.

Sabia que era possível encontrar os dois que faltavam, mas sozinho era impensável. Fiz discurso a pedir um voluntário mas encaminhei a resposta para quem tinha seleccionado. Nem o deixei pensar muito, confiava nas suas capacidades e ele tinha de confiar em mim.

Dei instruções aos outros dois para levarem os dois mineiros para a superfície e aguardem a minha comunicação por rádio. Indiquei uma fita de tempo de 30 minutos – se não comunicasse com eles ou com outros brigadistas que organizassem um grupo de quatro para entrar entretanto, deviam comunicar com o meu homólogo na mina da Somincor em Portugal e pedir ajuda (ambas as operações pertenciam à Lundin Mining).

Lá regressam à superfície e eu com o meu eleito avançamos pelo nevoeiro negro. As incertezas  eram muitas, sentia o peso da responsabilidade da vida do meu brigadista e dos outros dois mineiros.

O facto de conhecermos todas as galerias e termos visto o esboço do local facilitou bastante a chegada à máquina que ainda estava a arder mas sem grande intensidade, devido à insuficiência de oxigénio conseguimos extinguir o foco de incêndio com alguns extintores que se encontravam nas imediações.

Tentei localizar-me e recordar o esboço que tinha recebido. Estávamos perto do local onde supostamente estavam os dois mineiros. O fumo negro era de tal forma denso que era impossível ver o papel.

Quando começamos a caminhar para o possível local, começamos a ouvir uma buzina,  aceleramos o passo e ao chegar ao local só vemos o português. O espanhol tinha ficado bloqueado dentro da cabine do seu camião e aí permanecia.

Pedi ao meu brigadista para dar atenção ao português e direccionei-me para o camião, abri a porta e verifiquei que o condutor está em pânico mas com a máscara de fuga colocada. Tentei acalmá-lo e simultaneamente avaliei o regresso à BAF e a melhor forma de fazê-lo, calculando e confirmando se o ar que restava  no meu equipamento e do meu brigadista era suficiente.

A autonomia de ambos, com alguma margem, era suficiente para chegar a BAF, mas o elemento espanhol estava a hiperventilar e a sua máscara estava demasiado quente, o que significava que o filtro se encontrava próximo da sua saturação. Decidi retirar-lhe a máscara de fuga e colocar-lhe um capuz de resgate e partilhar o meu ar com ele. Após conseguir convencê-lo da minha decisão, lá fizemos a troca. De imediato, organizei o grupo e iniciamos a subida até à BAF. O esforço seria grande, pois estamos a falar de um declive de entre 10 e 12% com visibilidade praticamente nula. Garantindo o contacto físico e com o hasteal (parede lateral da galeria), qualquer queda, engano no percurso ou desorientação podia significar a morte de todos.

Ao fim de alguns minutos começamos a ver luz por entre o nevoeiro negro, sinto um alívio enorme, olhei para o meu manómetro  e vi que estava a aproximar-me dos 60 bar. O ânimo tomou conta de todos, os passos aumentaram a cadência, “a BAF aproximou-se e eis que chegamos”.

Todos retiraram os equipamentos e saborearam o ar fresco e limpo do exterior. Peguei no rádio e informei que estamos na BAF e com os dois mineiros. Nesse momento consegui ouvir as vozes de alegria do pessoal no exterior.

Em poucos minutos chegou uma pick-up. Dei instruções para que levem para a superfície os dois mineiros. Eu e o meu brigadista aguardamos e subiríamos na próxima leva. Ambos tivemos uns minutos de silêncio, saboreando o momento e sentimento de missão cumprida.

A chegada à superfície foi indescritível, todos agradeceram e foram ditas afirmações que nunca esquecerei, enfim…

Safety e Security. Como é que vivem estas duas realidades conjuntamente?

Para mim sempre foram actividades complementares. Se pensarmos que os elementos do Security conhecem toda a instalação e estão presentes todos os dias do ano (24 sobre 24 horas), em caso de ocorrência em qualquer situação de emergência é imprescindível o seu enquadramento em todo o processo de resposta.

Intervenção/Inspecção Técnica de poço de ventilação

Em todos os projectos em que tenho participado, tenho envolvido os vigilantes como elementos integrantes no modelo de prevenção e resposta a emergências. Vejo a segurança como um todo e aplico, sempre que possível, o conceito de segurança integrada.

Consegue-se facilmente ter a noção de complementaridade, quando se passa pelas duas vertentes ou se faz um percurso profissional baseado na aprendizagem adquirida com diversas experiências, “absorvendo” o máximo com humildade e abertura.

Durante a sua experiência profissional acompanhou de perto situações delicadas ao nível do resgate de pessoas. Como se consegue lidar, por um lado, com esse acontecimento emergencial e, por outro, com a imprevisibilidade, os meios à disposição, as diferentes geografias, mentalidades e as próprias emoções e pressão? Como se prepara mentalmente para este tipo de operações? Que estratégias utiliza para lidar com o tempo e com o risco associado?

Não há uma fórmula ideal. Ao contrário do que muitos profissionais pensam, não é algo que se aprende meramente num curso. No entanto, existem premissas que mantenho há muitos anos e que utilizo como linha orientadora.

“Se é possível está feito, se é impossível há-de fazer-se.”  Vi esta frase no primeiro dia de curso de Para-quedismo Militar. Marcou-me para sempre. Olho para as situações com o sentimento de que tudo é possível e mantenho o foco não no problema, mas sim na solução. Depois tento abstrair-me do resto, de forma a pensar e tomar decisões. Normalmente, entrego o telemóvel a um colega de equipa para atender telefonemas  dos responsáveis da mina e até autoridades. A partir dessa fase, é reunir todas as informações e delinear toda a operação.

É claro que o facto de ser “mineiro”, de conhecer a mina e a equipa é muito importante, bem como ser sempre um trabalho colectivo. Cada situação é distinta, há inúmeros factores na equação.

A minha primeira intervenção numa mina subterrânea foi em 2007, precisamente com um fogo e um desaparecido. Tinha pouca experiência em subsolo e os meus brigadistas estavam no início da sua formação, mas foi impressionante. Seguiram-me como se eu fosse o melhor do mundo e arredores. Nessa situação, funcionou a capacidade de decisão, liderança e camaradagem. Depois dessa situação, habituei-me no dia-a-dia a pensar em diversas possibilidades e opções. É algo muito mental, algumas situações foram passadas a papel e utilizadas como cenários para exercícios e simulacros em diversas minas dos grupos mineiros em que trabalhei.

Mina de Catalina Huanca nos Andes
Peruanos

Depois é ser anti-herói, tentar ter low profile e pensar que um dia algo pode correr mal. Só sei se uma decisão é certa depois de tomá-la e ver o seu resultado.

O know how e o saber fazer dão uma certa tranquilidade moral no momento de pedir à minha equipa para fazer algo. A vivência da laboração mineira é muito importante. Em alguns países, há minas em que um candidato a brigadista tem de ser voluntário e ter alguns anos de mineiro.

O objectivo é sempre a resposta a situações de emergência, seja por que há vidas em risco ou bens materiais. Nunca é fácil, normalmente dou este exemplo:

Um elemento do INEM, quando sai para uma ocorrência, tem uma probabilidade reduzida de socorrer uma pessoa conhecida. Convivemos todos os dias com as pessoas que teremos de socorrer, os seus filhos possivelmente são colegas de escola dos nossos. Conhecemos as suas famílias e tratamo-las pelos seus nomes. Ao longo destes anos já vivi situações dramáticas, em que a vítima é amiga de infância de um, ou vários elementos da equipa que está a intervir. É uma situação que é necessária gerir com ponderação devido à sua complexidade.

Não tenho “receitas ideais”, tenho experiências vividas, é com elas que aceito todos os desafios sempre com o pensamento positivo, “é mais uma e vai correr tudo bem”. É também com a transmissão das experiências que formo brigadistas e seus chefes de equipa. 

Alguma vez sentiu medo durante uma operação de resgate? Que estratégias podem ser usadas pelos profissionais para contornar esses sentimentos?

Sou para-quedista desde os 19 anos, o medo existe sempre e a estratégia é saber contorná-lo e ajudar os elementos que dependem de nós a fazê-lo da melhor forma. Num salto de para-quedas, no momento em que se salta da porta, vive-se o salto até pôr os pés no chão. Vivo uma intervenção da mesma forma.

Sente que o facto de ser português o ajudou durante alguma operação?

É difícil responder, mas algumas vezes ouvi referências positivas pelo facto de ser português. Houve uma ocasião que em Espanha alguém me chamou o Mourinho do Resgate Mineiro. É sabido que temos uma elevada capacidade de adaptação mas também existe percepções contrárias no que respeita à nossa cultura e profissionalismo.

Qual o seu lema de vida e que princípios o movem?

A vida é um livro, cada dia é uma página do nosso livro. Tento fazer o melhor todos os dias e viver o momento. Dedico-me a um projecto e objectivo com intensidade, visto a “camisola” e integro com facilidade novas equipas.

Actualmente divide o seu tempo entre Portugal e a Finlândia, é coach, consultor e professor. Que aspectos/características e preparação considera essenciais para um profissional desta área?

Tudo o que mencionei anteriormente. Depois os seus pares, ou seja, o mundo mineiro é pequeno, as corporações procuram pessoas com experiência e provas dadas para novos projectos. Depois de entrar na actividade a nível internacional e participar em dois ou três projectos com sucesso, através da resolução de problemas e contribuindo para o aumento de segurança e produtividade, dificilmente se pára. O essencial são as experiências passadas, a capacidade de trabalho de equipa, a adaptação a novas culturas, condições de trabalho e de vida difíceis e extremas.

A nível global, pela sua experiência, existe uma partilha de conhecimentos nestas matérias entre pares? Há espaço para a evolução nesta área, ao nível de equipamentos, tecnologias e metodologias? Que carências detecta?

Na indústria mineira não se vive um ambiente de concorrência e é normal a troca de experiências e informações, que servem como aprendizagens para todos. As competições em  diversos países têm o objectivo principal de convívio e, normalmente, são mais um meeting do que uma competição.

No caso do Mine Rescue somos uma família. Normalmente os elementos são pessoas simples e humildes, não usamos fardas, vestimos um fato macaco e não há espaço para medalhas. 

Sempre houve uma evolução contínua a nível técnico e tecnológico, existem marcas que produzem material para resgate utilizado por bombeiros que iniciaram   a sua actividade a desenvolver soluções de segurança para a indústria mineira.

As carências, no geral, são poucas ou até insignificantes se forem cumpridos os procedimentos e aprendizagens obtidas ao longo dos anos.

Para mim, é mais preocupante a realidade que se vive em Portugal. As autoridades competentes nunca viram as brigadas mineiras como uma equipa profissional capaz de responder a emergências complexas, seja na fase de resposta ou prevenção, através da formação e intercâmbio, ao contrário do que se passa noutros países, em que a intervenção e a colaboração de brigadas mineiras em acidentes em subsolo em ambiente urbano e outros cenários é comum e está protocolada.

Em Portugal existem diversas carências a nível de equipamentos e experiência para intervenções em subsolo, mas infelizmente nunca foi solicitado apoio aos mineiros para ocorrências com necessidades especificas nem apoio e parecer técnico no desenvolvimento de  modelos de prevenção .

Esta entrevista foi realizada por email.