As práticas comerciais desleais na segurança privada – o caso DGAJ

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Por Jorge Ferreira Peixoto, Master Degree in Business Economics, Católica Porto Business School, Licenciado em Ciências Económicas e Empresariais, Universidade Lusófona do Porto, Pós-Graduação Direção de Segurança, Universidade Lusófona do Porto

 

Nos últimos dias temos vindo a assistir a um verdadeiro sobressalto mediático e político em torno de questões relacionadas com os agentes de segurança privada. O direito ao pagamento pontual das suas retribuições e direitos relacionados com o instituto da transmissão de estabelecimento têm sido, de acordo com as notícias, colocados em causa por algumas empresas. A questão foi até um dos temas levados ao debate quinzenal pela líder do Bloco de Esquerda e objecto de audição parlamentar das duas associações empresariais e um sindicato.

Salvaguardando-se a transmissão de estabelecimento para outros fóruns, propõe-se a apreciação da questão do pagamento pontual de retribuições. Apreciando-se, refira-se, numa linha de análise aos reparos de todos os parceiros sociais que afirmam, há anos, que as escolhas do Estado estimulam o aparecimento de empresas incumpridoras; isto porque, repetidamente, referem, são celebrados contratos com empresas que praticam preços desonestos, promovendo o dumping social, sonegando impostos e contribuições ao Estado e incorrendo sistematicamente em práticas ilícitas e restritivas da concorrência.



O caso tem vindo a ser ilustrado pelo comportamento duma empresa que ganhou um concurso promovido pela Direcção Geral da Administração da Justiça (DGAJ), no valor aproximado de 7 milhões de euros, cujo prazo de execução decorre entre Agosto de 2019 e Dezembro de 2020. Conhecidos que são os repetidos atrasos no pagamento ao seu pessoal por parte da empresa contratada, a DGAJ chegou ao ponto de se dispor a antecipar pagamentos para suster a crise social instalada à porta dos tribunais.

Dito isto, a questão que se coloca é se a DGAJ podia, de alguma forma, prever este desfecho e estas irregularidades laborais. A resposta é simples: podia e devia tê-lo feito, sob pena de contribuir para a degradação das condições de trabalho, promover a distorção da concorrência, e de ser, ela própria, desde a entrada em vigor, da Lei 46/2019 de 8 de julho, co-autora de actos de flagrante ilegalidade.

Desde logo pela questão do preço. Do confronto entre os preços pelos quais a DGAJ adjudicou os serviços e o Custos Variáveis Mínimos (CVmin) que a empresa deverá suportar (ou deveria, se cumpridas todas as disposições do Código do Trabalho e do Contrato Colectivo de Trabalho aplicável), sobressai desde logo a impossibilidade do contrato ser cumprido sem prejuízo. A sua execução implica (sempre no pressuposto do cumprimento das leis e demais questões regulamentares aplicáveis) uma distância daquele custo que vai de 380 e 339 mil euros, consoante o CCT aplicável. E, note-se, que este CVmin nem sequer reproduz todos os custos. Para ser insusceptível de discussão, este CVmin limita-se a reproduzir apenas os custos com salários e encargos que toda e qualquer empresa terá de suportar em função do Contrato Colectivo de Trabalho aplicável. O intervalo no prejuízo apresentado justifica-se pela existência no sector de contratos colectivos distintos, e com CVmin também distintos.

A DGAJ, porém, não se limitou a uma contratação com prejuízo, ilegal, como se disse, à luz da Lei 46/2019. A DGAJ não só violou a lei como a promoveu desde o anúncio do procedimento. Ao instituir um preço-base (preço acima do qual qualquer proposta tem de ser excluída) insuficiente para suportar aqueles mesmos CVmin`s, neste caso, um preço-base afastado deste custo entre 237 e 196 mil euros (consoante contrato aplicável), a DGAJ acaba por ser o primeiro promotor de práticas ilícitas e restritivas da concorrência. Diga-se, em abono da verdade, que a DGAJ não é caso único na contratação pública. Nem nos preços porque adjudica os serviços colocados a concurso nem na definição de preços-base. Aliás, o critério (a existir) na definição de preços-base é um enigma. Cada entidade parece “atirar” com um número sem qualquer critério que não seja o de tentar um preço inferior ao do procedimento anterior numa pressão economicamente irrealista.



E assim, deve lamentar-se que o exemplo da DGAJ (infelizmente não é único) veicule uma ideia pior do que aquela que vinha sendo revelada pelos parceiros sociais: agora, e na contratação púbica, o Estado não só promove a ilegalidade como também a pratica.

E mais. O procedimento mostra que a DGAJ foi muito descuidada na selecção do seu fornecedor. Este adjudicatário, de acordo com os seus relatos financeiros de 2018 (últimos conhecidos) dificilmente se poderia apresentar mais fragilizado. Os seus capitais próprios registam um valor quase 12 vezes inferiores ao capital social mínimo que uma empresa de segurança deve ter para se poder constituir, e rácios de solvabilidade e de autonomia financeira inferiores a 1,5%. Com estes valores terá capacidade para assumir responsabilidades presentes ou futuras com os seus stakeholders? Tanto não tem que a Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública, apesar da generosidade dos critérios que impôs, teve de desqualificar a sua candidatura para o Acordo Quadro (AQ-VS-2019).

Num mail a que a SIC (um dos órgãos de comunicação social que divulgou a notícia em prime time) diz ter tido acesso, e referindo-se aos salários, a DGAF afirma: Sendo certo que a DGAJ não é responsável pelas vicissitudes laborais…. Ora esta afirmação reflecte bem a distância a que as instituições públicas se colocam da lei. Perante a Lei, a DGAJ é solidariamente responsável pelos pagamentos das retribuições aos trabalhadores e das respectivas obrigações contributivas.

Assim, verberar o comportamento (ou as práticas) da empresa adjudicatária deixando a DGAJ (aqui tomada como mau exemplo de todo o Estado nos actos de contratação pública destes serviços) imune a qualquer crítica, e às consequências do seus actos, quando é co-autora na ilegalidade praticada, só é possível num Estado crente que que tudo o que é público é virtuoso e tudo aquilo que é privado é vicioso.