A privatização de funções de segurança interna

Opinião

POR Joel Martins – Oficial do Exército / Licenciado em Segurança Pública / Especialista em Gestão e Direção de Segurança

A privatização de funções de segurança interna é uma realidade cada vez mais presente na política securitária nacional. O Estado apesar de responsável pela garantia da segurança pública e segurança interna do nosso país não possui o monopólio da segurança individual e tem progressivamente descentralizado o exercício de poderes de polícia das forças e serviços de segurança em entidades privadas.

– A SEGURANÇA INTERNA: DO MONOPÓLIO DE PODERES DO ESTADO À PRIVATIZAÇÃO DA SEGURANÇA

Desde a sedentarização, algures entre o Paleolítico e Neolítico, a humanidade viu-se envolvida pelo fenómeno de violência, que constitui um problema social central. Contudo, tais ações negativas podem ser potenciadoras de mudanças positivas na sociedade. Assim sendo, numa tentativa de suprimir um estado de bellum omnia omnes, ou seja, uma guerra de todos contra todos, a sociedade tendeu a evoluir-se durante todo o fim temporal da história.

No século XVIII, Jean-Jacques Rousseau na teoriaDu contrat social”, concebeu uma ideia embrionária de Estado na qual este teria a responsabilidade de garantir à sociedade fins como a segurança, justiça ou bem-estar. Inerente a esta teoria, emergem as várias dimensões do conceito de segurança.

Ao longo dos tempos, este conceito foi evoluindo de um sentido tradicional claramente influenciado por fatores militares, ou seja, hard power, onde o importante é a sobrevivência do Estado, para uma vertente não tradicional, ou seja, soft power, onde as questões sociais, ambientes e económicas ganham destaque.

Hoje, intrinsecamente ligado ao conceito de segurança, surge o conceito de segurança interna, que pode ser definida como:

«a atividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas»[1]

Inicialmente existia uma conceção de que o Estado era o principal ator no campo da segurança. Hoje deixa de ser visto como principal providenciador de segurança pois cada vez mais tem delegado funções securitárias preventivas no setor privado.

Neste sentido, evoluiu-se de um prisma onde existia um total monopólio de poderes do Estado para a privatização de entidades locais, nacionais ou internacionais que atuam de forma subsidiária ou complementar com as forças e serviços de segurança e concorrem para garantir a segurança interna.

– A SEGURANÇA PRIVADA, QUID EVOLUTIO?

Debrucemo-nos agora sobre a evolução da atividade da segurança privada em Portugal.

A atividade de segurança privada passou, ao longo dos tempos, de um caráter subsidiário, ou seja, que auxilia, para também ter um caráter de complementaridade, ou seja, que completa.

Constata-se factualmente uma notória evolução na importância desta atividade, sendo que hoje em dia, a segurança privada apresenta-se com um ator do sistema de segurança interna[2], tendo vindo a revelar-se muito importante no quadro da prossecução da segurança pública interna tanto em termos quantitativos como qualitativos.

Desde a segurança estática aos eventos desportivos ou espetáculos, a segurança privada tem vindo a afirmar-se como uma solução possível, plausível e viável.

A crise de governabilidade, estampada na ineficácia do Estado prosseguir os seus fins leva a uma rutura e enfraquecimento do poder estatal o que por sua vez potencia a ação dos atores privados no setor que se pensava, em primeiro plano, ser apenas de domínio público.

Apesar de uma evolução expetável do setor, há ainda um longo caminho a percorrer. Infelizmente, reina no mundo da segurança privada uma cultura de dumping onde a empresa que fizer o preço mais baixo, é a empresa contratada. No entanto, preços baixos não costumam significar bons serviços, antes pelo contrário.

É, pois, urgente mudar mentalidades e neutralizar os efeitos prejudiciais que esta prática tem trazido ao universo da segurança privada. Torna-se fundamental que todos os intervenientes na área da segurança desde o Estado às forças e serviços de segurança e empresas de segurança privada revejam o setor da segurança privada de forma a conferir a esta atividade mais credibilidade e autoridade. Deve, então, ser fomentada a criação de uma cultura de segurança no nosso país de forma a garantir o bem-estar de toda a sociedade.

– A PRIVATIZAÇÃO DE FUNÇÕES DE SEGURANÇA PÚBLICA E OS SEUS LIMITES

A delegação de poderes públicos em entidades privadas tem sido objeto de muita polémica e controvérsia, algo que prevemos continuar a ocorrer nos próximos tempos. Uma privatização total de funções de polícia é claramente irrealista tendo em conta que, em primeiro plano, a prossecução da segurança interna é missão primordial do Estado. Contudo, a Lei Fundamental não proíbe de forma alguma a privatização de funções de poderes públicos.

Nesta senda, sendo o desiderato do Estado o fornecimento de segurança a toda a sociedade acomponente privada contribui significativamente tendo-se revelado como essencial na garantia da segurança pública. A criação da atividade da segurança privada surge então como necessária para colmatar as falhas securitárias que a máquina estatal apresenta.

No espectro securitário atual, existem dois conceitos fundamentais: segurança preventiva e segurança reativa. A função primária da segurança privada centra-se no pilar da prevenção, ou seja, segurança preventiva. Quando à segurança reativa, essa já cabe às forças e serviços de segurança que têm o poder de coerção caso seja necessária a reposição da ordem e tranquilidade pública através da força.

– O SURGIMENTO DE UMA NOVA ORDEM DE SEGURANÇA PÚBLICA INTERNA

A configuração atual da oposição entre os domínios publicum e privatum é o motivo principal que deve motivar o desenvolvimento de uma nova ordem de segurança interna, já que tanto as missões das forças e serviços de segurança como as missões inerentes à segurança privada têm ganho novos moldes.

O Estado, consciente da sua ineficácia em garantir o fim da segurança, vai aos poucos demitindo-se de tal papel, permitindo assim um crescimento da indústria privada da segurança.

Apesar do exercício de poderes coercivos na segurança privada ser irreal, o setor tende a ter um futuro risonho, já que sociedade sem crime ou violência constitui uma realidade utópica, mas é incomportável um aumento desmesurado da dimensão e efetivos no âmbito do serviço público.

Cabe-nos afirmar que cavalgamos a passos largos para um novo prisma securitário onde o setor privado, não querendo nem necessitando de substituir o público, irá, em muitas áreas, ser um fiel auxiliar das forças e serviços de segurança.

Garantir a segurança é assegurar a democracia.


[1]Lei n.º 53/2008. Lei de Segurança Interna. Art.º 1.

[2]Resolução do Conselho de Ministros n.º 45/2007. Anexo I – Sistema Integrado de Segurança Interna.

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